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segunda-feira, 16 de junho de 2025

VLADI

 


O pequeno cômodo da quitinete estava empilhado de objetos descartáveis. Ali aproveitavam-se a TV, o notebook, a geladeira e a máquina de lavar. Sem esquecer, é claro, da rede de balanço, lugar preferido de Rennys. Mas os livros, o guarda-roupa por montar, cartas, retratos, lembranças de outras épocas acumulavam espaço e não contribuíam com nada. A velha parede por pintar. A idade já avançada, sem tempo de errar.



Em dois quadros, lado a lado, as duas graduações: história e agronomia. Tudo indicava um excelente emprego, mas as coisas não saíam do lugar, para o nosso protagonista. Ele tinha um problema sério de comunicação e era crítico ferrenho de todas as hipocrisias da sociedade. Pelo menos era assim nos seus pensamentos. Por isso, muita gente o evitava.

Quando ainda era jovem, dava para ludibriar as pessoas. Mesmo um tanto esquisito, conseguia namorar algumas mulheres. Mas as cicatrizes e dificuldades da vida foram o tornando um tanto amargo e distante. Por sorte, o seu lado antissocial lhe ajudou a se concentrar nos estudos e ele ainda passou num concurso público para auxiliar administrativo, da prefeitura de sua cidade.

O dinheiro não era muito, mas pelo menos pagava o aluguel e comia. Já se acercando dos 40 anos, ele percebeu que não tinha mais nada a fazer na face da terra. E pensou várias vezes na morte, uma solução fácil para dar fim à dor que o acometia todos os dias, ao acordar, sem perspectivas de mudanças. Todas às vezes que ele contava um plano para algum amigo, aquilo dava errado, ou as pessoas brincavam com sua cara.

Ele sentia uma raiva dentro de si, sempre estava prestes a explodir e pronto para cometer algum crime. A sua revolta contra o mundo era gigante. Por que as mulheres não o admiravam? Por que ele não conseguia mostrar seu verdadeiro valor à sociedade? O jeito era comer, assistir conteúdo nos streamings e ficar mexendo no celular, em busca de uma conexão que o tirasse da solidão. Já tinha muito ouvido falar em solitude, uma forma de estar só por prazer, para autoconhecimento. Mas Rennys não tinha o que ver dentro de si.

Era um vazio sem fim. Mas um dia, ele estava vendo uma notícia no Instagram, sobre pessoas que haviam encontrado o caminho da felicidade. Mas tinha um preço para isso. Primeiro a viagem de Fortaleza até o interior da Bahia para conhecer o centro religioso. Como ele estaria de férias em breve, resolveu pegar um empréstimo no banco, como servidor, tinha pelo menos essas facilidades. Não sabia como pagaria, mas ele não tinha mais nada a perder. Antes da viagem, ele teve muitos pesadelos recorrentes. Num deles um ser misterioso de capa cinza aparecia e dizia que ele não precisava gastar dinheiro e nem viajar para tão longe, bastaria proferir umas palavras e sua vida mudaria por completo.



Ele ficou assustado nos primeiros dias. Quase não conseguia mais dormir. Porém, a curiosidade de que aquilo fosse real foi mais forte. Então ele chamou o nome: VADLI. E logo acordou. E nada aconteceu. Então voltou a vida normal. Andar pelo calçadão da Beira-Mar. Ir a concertos musicais, peças de teatro, ou cinema. Um desses dias, voltando pelo Centro da Cidade, no calçadão da Praça do Ferreira, avistou um homem de barba branca, cabelos cinza e capa cinza. O senhor o olhou firme e fez um sinal com a mão, chamando-o para sentar-se ao seu lado.

Então o idoso falou:

Vontade, Alimento, Dinheiro, Liberdade e Inocência.

— O que isso quer dizer? — Curioso, Rennys perguntou.

— Levante-se e siga seu caminho — Após falar, o guru saiu.

Mesmo sem entender, Rennys partiu com um colar no pescoço e uma dúvida na cabeça.

Finalmente, as férias começaram. Sem planos algum para viajar, por falta de dinheiro e depois desse encontro com essa figura estranha, o jeito foi ficar recolhido em casa. Sem nada para fazer, tudo parecia pior do que antes. Mas como assim? O que aquela pessoa havia lhe falado em sonhos e depois pessoalmente não era isso. O dia já se findara, um dia perdido. Mas uma batida insistente na porta mudaria isso.

Ele levantou-se da rede um pouco zonzo e foi ver quem era. Para sua surpresa, uma jovem de cabelos loiros, lisos, pele clara, de vestido preto, colado ao corpo, botas pretas largas.

— Boa noite, aqui que mora o Rennys? — Uma voz suave, um olhar penetrante.

— Sou eu, eu fiz algo de errado? — O homem perguntou assobrado.

— Me acompanhe, que você verá.

Os dois saíram. Logo na frente, do prédio, havia uma limusine preta. O motorista de preto, com luvas brancas, os aguardava. Ela parecia uma jovem Inocente. Rennys foi com má Vontade, mas entrou no carro. Lá dentro, uma música cantada por uma voz suave de um homem. A voz de Alessandro Moreschi, conhecido como, ‘O Anjo de Roma’, uma figura castrada na infância devido a uma hérnia e que tinha a voz aguda, por não desenvolver a voz masculina por falta de testosterona. O cantor, soprano, cantava Ave Maria. Mas era uma gravação antiga, de 1904.

Nos dias seguintes, a jovem, o levou a lugares incríveis, onde ele pode conhecer pessoas importantes e sua vida havia mudado. Conseguira um emprego para viajar o mundo, escrevendo sobre as peculiaridades de cada lugar. Largou seu emprego público e começou a ficar com muito Dinheiro.

Agora era um homem com Liberdade. Tinha sempre o que queria, a companhia de belas mulheres, bons amigos. Bom Alimento. Nada lhe faltava nessa sua nova jornada. Passaram-se anos. Há poucos dias de completar 60 anos, Rennys teve um tremendo susto. Quando caminhava pelo Museu de Louvre, reconheceu a figura de uma jovem bonita. Primeiramente, ele ficou incrédulo, não poderia ser a mesma pessoa. Não ficou velha.

— Vim lhe buscar — A voz suave, o alertou.

— Por quê? — O homem achava estranho esse encontro.

— É chegada a hora de pagar a promessa.

— Eu não lembro de promessa alguma.

— Você proferiu as letras: VLADI e isso é o contrato.

Ele entrou na limusine e o homem de vinte anos atrás estava com a mesma aparência, como se tivesse passado apenas, um dia. O caminho foi longo, horas se passaram, até que finalmente chegaram ao destino. Era uma floresta. Eles caminharam um pouco. O coração de Rennys batia mais acelerado. Quando avistaram de longe, o homem da capa cinza. Sentado em um trono. Tinha duas cadeiras viradas de frente para ele.

— Aproxime-se, Rennys, lhe aguardava. Gostou da vida feliz que lhe proporcionei por vinte anos? Eu o queria dar mais tempo, mas tenho outras almas a resgatar.

— Espera aí, almas? — O terror tomou conta do seu rosto.

— Calma, amigo, você gostou dessa jovem?

— Ela é muito bela, mas não envelheceu nada.

— Ela é minha filha e vocês vão se casar agora e darei mais dias para gerar uma vida e depois você me seguirá.

E foi assim, o demônio, celebrou o casamento dos dois. A consumação se deu logo após. Ao acordar no dia seguinte, ele se assustou. A mulher estava com uma barriga de gravidez como se fosse de meses. E dias depois ela teve o menino. Uma criança linda.

A aparência da mulher foi logo mudando e ela foi ficando com cabelos grisalhos. E dias depois tinha a aparência de uma senhora de sessenta anos. Rennys, vieram as lágrimas, porque chegou a amar essa mulher e agora via ela definhar na sua frente.

— Eu lhe amei desde a primeira vez que o vi — disse, em meio a lágrimas, a idosa — Mas esse era o plano, deixar um descendente na terra, para que os planos do meu pai continuem. Ele precisa conquistar mais adeptos e ganhar mais almas. Pois o reino de Deus está próximo e ele tem que lutar para manter a morte e a destruição sobre a terra.

— E o que acontece comigo? — Perguntou já com medo da resposta.

— Você me segue agora — A voz surgiu de uma fresta de uma janela, onde tinha escuridão.

— E se eu não quiser?

— Você morre. Ou você me serve. Se não me servir, eu mato sua família. Essa atual e aquela que você deixou quando partiu.

— Eu era solteiro, não tinha ninguém.

— Deixa eu lhe mostrar — Ele abriu um portal e se pode ver uma mulher, que tinha sido uma namorada de Rennys, há muito tempo — Ela lhe escondeu, esse filho. E tem outras, que você verá. Você fez muitos filhos e nenhuma mulher o quis contar, pois você não tinha dinheiro. E eu lhe dei tudo.

— E agora quer tomar. Não é justo.

— Não existe justiça. O mundo é uma hipocrisia. Mas elas não vão passar fome e nem seus filhos, eu prometo.

E Rennys teve que ser um servo do maligno e um senhor de várias guerras pelo mundo. Divisões, pestes, doenças. Tudo porque um dia ele não estava satisfeito com sua vida, simples e queria viver algo diferente. Mas o plano do universo para ele era outro. Sabendo disso, o demônio se usou de suas fraquezas e barganhou sua alma, que queria Vontade, Alimento, Dinheiro, Liberdade e Inocência.

O que lhe restou foi um Deus, das trevas. Lúcifer.


 

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