O
pequeno cômodo da quitinete estava empilhado de objetos descartáveis. Ali
aproveitavam-se a TV, o notebook, a geladeira e a máquina de lavar. Sem
esquecer, é claro, da rede de balanço, lugar preferido de Rennys. Mas os
livros, o guarda-roupa por montar, cartas, retratos, lembranças de outras
épocas acumulavam espaço e não contribuíam com nada. A velha parede por pintar.
A idade já avançada, sem tempo de errar.
Em
dois quadros, lado a lado, as duas graduações: história e agronomia. Tudo
indicava um excelente emprego, mas as coisas não saíam do lugar, para o nosso
protagonista. Ele tinha um problema sério de comunicação e era crítico ferrenho
de todas as hipocrisias da sociedade. Pelo menos era assim nos seus
pensamentos. Por isso, muita gente o evitava.
Quando
ainda era jovem, dava para ludibriar as pessoas. Mesmo um tanto esquisito,
conseguia namorar algumas mulheres. Mas as cicatrizes e dificuldades da vida
foram o tornando um tanto amargo e distante. Por sorte, o seu lado antissocial
lhe ajudou a se concentrar nos estudos e ele ainda passou num concurso público
para auxiliar administrativo, da prefeitura de sua cidade.
O
dinheiro não era muito, mas pelo menos pagava o aluguel e comia. Já se
acercando dos 40 anos, ele percebeu que não tinha mais nada a fazer na face da
terra. E pensou várias vezes na morte, uma solução fácil para dar fim à dor que
o acometia todos os dias, ao acordar, sem perspectivas de mudanças. Todas às
vezes que ele contava um plano para algum amigo, aquilo dava errado, ou as
pessoas brincavam com sua cara.
Ele
sentia uma raiva dentro de si, sempre estava prestes a explodir e pronto para
cometer algum crime. A sua revolta contra o mundo era gigante. Por que as
mulheres não o admiravam? Por que ele não conseguia mostrar seu verdadeiro
valor à sociedade? O jeito era comer, assistir conteúdo nos streamings e ficar
mexendo no celular, em busca de uma conexão que o tirasse da solidão. Já tinha
muito ouvido falar em solitude, uma forma de estar só por prazer, para
autoconhecimento. Mas Rennys não tinha o que ver dentro de si.
Era
um vazio sem fim. Mas um dia, ele estava vendo uma notícia no Instagram, sobre
pessoas que haviam encontrado o caminho da felicidade. Mas tinha um preço para
isso. Primeiro a viagem de Fortaleza até o interior da Bahia para conhecer o
centro religioso. Como ele estaria de férias em breve, resolveu pegar um
empréstimo no banco, como servidor, tinha pelo menos essas facilidades. Não
sabia como pagaria, mas ele não tinha mais nada a perder. Antes da viagem, ele
teve muitos pesadelos recorrentes. Num deles um ser misterioso de capa cinza
aparecia e dizia que ele não precisava gastar dinheiro e nem viajar para tão
longe, bastaria proferir umas palavras e sua vida mudaria por completo.
Ele
ficou assustado nos primeiros dias. Quase não conseguia mais dormir. Porém, a
curiosidade de que aquilo fosse real foi mais forte. Então ele chamou o nome: VADLI.
E logo acordou. E nada aconteceu. Então voltou a vida normal. Andar pelo
calçadão da Beira-Mar. Ir a concertos musicais, peças de teatro, ou cinema. Um
desses dias, voltando pelo Centro da Cidade, no calçadão da Praça do Ferreira,
avistou um homem de barba branca, cabelos cinza e capa cinza. O senhor o olhou
firme e fez um sinal com a mão, chamando-o para sentar-se ao seu lado.
Então
o idoso falou:
—
Vontade, Alimento, Dinheiro, Liberdade e Inocência.
—
O que isso quer dizer? — Curioso, Rennys perguntou.
—
Levante-se e siga seu caminho — Após falar, o guru saiu.
Mesmo
sem entender, Rennys partiu com um colar no pescoço e uma dúvida na cabeça.
Finalmente,
as férias começaram. Sem planos algum para viajar, por falta de dinheiro e
depois desse encontro com essa figura estranha, o jeito foi ficar recolhido em
casa. Sem nada para fazer, tudo parecia pior do que antes. Mas como assim? O
que aquela pessoa havia lhe falado em sonhos e depois pessoalmente não era
isso. O dia já se findara, um dia perdido. Mas uma batida insistente na porta
mudaria isso.
Ele
levantou-se da rede um pouco zonzo e foi ver quem era. Para sua surpresa, uma
jovem de cabelos loiros, lisos, pele clara, de vestido preto, colado ao corpo,
botas pretas largas.
—
Boa noite, aqui que mora o Rennys? — Uma voz suave, um olhar penetrante.
—
Sou eu, eu fiz algo de errado? — O homem perguntou assobrado.
—
Me acompanhe, que você verá.
Os
dois saíram. Logo na frente, do prédio, havia uma limusine preta. O motorista
de preto, com luvas brancas, os aguardava. Ela parecia uma jovem Inocente.
Rennys foi com má Vontade, mas entrou no carro. Lá dentro, uma música
cantada por uma voz suave de um homem. A voz de Alessandro Moreschi, conhecido
como, ‘O Anjo de Roma’, uma figura castrada na infância devido a uma hérnia e
que tinha a voz aguda, por não desenvolver a voz masculina por falta de
testosterona. O cantor, soprano, cantava Ave Maria. Mas era uma gravação
antiga, de 1904.
Nos
dias seguintes, a jovem, o levou a lugares incríveis, onde ele pode conhecer
pessoas importantes e sua vida havia mudado. Conseguira um emprego para viajar
o mundo, escrevendo sobre as peculiaridades de cada lugar. Largou seu emprego
público e começou a ficar com muito Dinheiro.
Agora
era um homem com Liberdade. Tinha sempre o que queria, a companhia de
belas mulheres, bons amigos. Bom Alimento. Nada lhe faltava nessa sua
nova jornada. Passaram-se anos. Há poucos dias de completar 60 anos, Rennys
teve um tremendo susto. Quando caminhava pelo Museu de Louvre, reconheceu a
figura de uma jovem bonita. Primeiramente, ele ficou incrédulo, não poderia ser
a mesma pessoa. Não ficou velha.
—
Vim lhe buscar — A voz suave, o alertou.
—
Por quê? — O homem achava estranho esse encontro.
—
É chegada a hora de pagar a promessa.
—
Eu não lembro de promessa alguma.
—
Você proferiu as letras: VLADI e isso é o contrato.
Ele
entrou na limusine e o homem de vinte anos atrás estava com a mesma aparência,
como se tivesse passado apenas, um dia. O caminho foi longo, horas se passaram,
até que finalmente chegaram ao destino. Era uma floresta. Eles caminharam um
pouco. O coração de Rennys batia mais acelerado. Quando avistaram de longe, o
homem da capa cinza. Sentado em um trono. Tinha duas cadeiras viradas de frente
para ele.
—
Aproxime-se, Rennys, lhe aguardava. Gostou da vida feliz que lhe proporcionei
por vinte anos? Eu o queria dar mais tempo, mas tenho outras almas a resgatar.
—
Espera aí, almas? — O terror tomou conta do seu rosto.
—
Calma, amigo, você gostou dessa jovem?
—
Ela é muito bela, mas não envelheceu nada.
—
Ela é minha filha e vocês vão se casar agora e darei mais dias para gerar uma
vida e depois você me seguirá.
E
foi assim, o demônio, celebrou o casamento dos dois. A consumação se deu logo
após. Ao acordar no dia seguinte, ele se assustou. A mulher estava com uma
barriga de gravidez como se fosse de meses. E dias depois ela teve o menino.
Uma criança linda.
A
aparência da mulher foi logo mudando e ela foi ficando com cabelos grisalhos. E
dias depois tinha a aparência de uma senhora de sessenta anos. Rennys, vieram
as lágrimas, porque chegou a amar essa mulher e agora via ela definhar na sua
frente.
—
Eu lhe amei desde a primeira vez que o vi — disse, em meio a lágrimas, a idosa
— Mas esse era o plano, deixar um descendente na terra, para que os planos do
meu pai continuem. Ele precisa conquistar mais adeptos e ganhar mais almas.
Pois o reino de Deus está próximo e ele tem que lutar para manter a morte e a
destruição sobre a terra.
—
E o que acontece comigo? — Perguntou já com medo da resposta.
—
Você me segue agora — A voz surgiu de uma fresta de uma janela, onde tinha
escuridão.
—
E se eu não quiser?
—
Você morre. Ou você me serve. Se não me servir, eu mato sua família. Essa atual
e aquela que você deixou quando partiu.
—
Eu era solteiro, não tinha ninguém.
—
Deixa eu lhe mostrar — Ele abriu um portal e se pode ver uma mulher, que tinha
sido uma namorada de Rennys, há muito tempo — Ela lhe escondeu, esse filho. E
tem outras, que você verá. Você fez muitos filhos e nenhuma mulher o quis
contar, pois você não tinha dinheiro. E eu lhe dei tudo.
—
E agora quer tomar. Não é justo.
—
Não existe justiça. O mundo é uma hipocrisia. Mas elas não vão passar fome e
nem seus filhos, eu prometo.
E
Rennys teve que ser um servo do maligno e um senhor de várias guerras pelo
mundo. Divisões, pestes, doenças. Tudo porque um dia ele não estava satisfeito
com sua vida, simples e queria viver algo diferente. Mas o plano do universo
para ele era outro. Sabendo disso, o demônio se usou de suas fraquezas e
barganhou sua alma, que queria Vontade, Alimento, Dinheiro,
Liberdade e Inocência.
O
que lhe restou foi um Deus, das trevas. Lúcifer.
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